quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

O Desejo em Espera: Uma Crônica Portuense











O Roteiro Mental

A cidade do Porto. Minha chegada era motivada por laços de sangue — o abraço da filha, o cheiro inédito do neto. Mas havia, na mala da alma, um enredo à parte, costurado ao longo de quase um ano de conversas transatlânticas. Ele, o homem do outro lado da linha, desenhava-se na imaginação com traços firmes: charme, estilo singular, a arte de comandar uma cozinha. Eu, de signo d’água e redescobrindo o romantismo na maturidade, criei um roteiro mental de possibilidades. Sonhos são de graça, e eu os gastei com fartura.

O convite veio, apressado e franco: "Quero muito te ver, menina, mas o trabalho me atropela. Pode vir ao restaurante? Já estamos a fechar, e aí poderei te dar atenção."

Claro que sim. A espera de um ano cabia toda naquela noite, que deveria ser especial, única, digna do prelúdio virtual.

Escolhi o melhor vestido. O batom vermelho, pauta de conversas anteriores, era a assinatura da expectativa. No Uber, o delírio se instalou: imaginei a mesa para dois à luz de velas, com vinho ou champanhe. Sabores, cheiros, o toque inicial que confirmaria a química do tempo.

O Abismo da Calçada

O restaurante ficava no primeiro andar. Avisei que cheguei e esperei. Paciente, justificando a demora com a crença de que ele estaria ultimando os preparativos para o encontro perfeito.

Quando ele desceu, era a imagem fiel da minha fantasia: o avental de chef, a faixa estilosa, o sorriso familiar. Meu coração fez a pergunta que a insegurança exigia: será que o encanto era recíproco? O abraço foi apertado. Um breve aviso, porém, quebrou a primeira cena do meu filme: "Vou só fechar. Já, já descemos para sair daqui."

Pois bem, o restaurante não seria o palco. A primeira parte do roteiro estava rasgada.

Saímos a pé pelas ruas históricas do Porto. Eu, em êxtase, absorvendo o cenário e a presença dele. Ele, na dele: sorridente, feliz por me ver, mas sem o menor ímpeto de me tocar, de segurar a mão, de cruzar o limite invisível do "nós".

Fomos a um bar charmoso. Vinho na taça, e o assunto, vasto, cobriu tudo, exceto o que de fato nos unia: a troca virtual de quase um ano. Não houve uma única menção à intensidade dos nossos telefonemas e roca de mensagens. A conversa pairava sobre filhos, família, a cidade, a vida... Tudo muito agradável, tudo muito seguro, tudo muito aquém.

A sugestão de ir para a "Baixa", a zona mais movimentada, reacendeu a chama da expectativa. O *flâneur que me guiava pelas vielas parou subitamente. Um olhar para o relógio. "Puxa, está muito tarde. Amanhã acordo cedo. Preciso ir."

A Derrota do Batom

Fiquei... bege. A noite, sem toque, sem beijo, sem assunto íntimo, me deixou boba e eufórica, mesmo assim fui embora com aquele sorriso que insiste em ficar no rosto até doer. Trocamos mensagens protocolares de "boa noite" e "foi muito bom te encontrar".

Nos dias seguintes, o ritmo do silêncio se impôs. Minhas mensagens, mais efusivas; as respostas dele, espaçadas, justificadas pela correria da cozinha e a distância do telefone. Minha autoestima, antes embalada pelo sonho, despencou. A certeza fria: ele não gostou. As perguntas que nos assombram: Falei demais? Fui inconveniente? Faltou atração física?

Até que, na véspera de um evento importante para ele — uma travessia no Rio Douro —, veio um convite para jantar. Um convite de última hora. E eu, sem um pingo de amor-próprio naquele momento, aceitei o inexplicável.

Encontramo-nos no Jardim do Morro. A noite me encontrou cheirosa, vestida para a confirmação. Ele chegou, radiante, e a primeira coisa que disse foi uma provocação: "Agora não estou a cheirar a cozinha".  Eu, aproveitei a "deixa."

Aproximei-me, respirei fundo perto do seu pescoço, senti seu cheiro bom, me emocionei e devolvi o elogio com um beijo naquela pele. E foi só isso. Jantamos, conversamos, bebemos. Ele me deu carona e me deixou em casa. Sem toque, sem aprofundamento, sem o "nós".

Senti o ímpeto de agarrá-lo, de beijá-lo, de forçar a timidez que eu queria acreditar que ele tinha. Mas o medo de estar ali por mera educação me paralisou.

Naquela noite, o sono não veio. Fiquei consumida pela raiva de mim: Por que não perguntei? Por que não falei o que sentia? As perguntas ficaram girando, sem respostas, na madrugada portuguesa.

E assim, sem sequer existir fora da minha cabeça, o romance acabou. Ele não foi derrotado por um rival, mas sim pelo abismo entre a realidade dele e o roteiro que eu havia escrito.

Ainda assim, a crônica de uma espera, de um batom vermelho usado em vão, vale a pena ser contada. Afinal, a vida é a arte de reescrever o final das histórias que a gente idealiza.


Alice Ventura

2023



*O flâneur é palavra de origem francesa: Observador Atento: É alguém que vagueia pelas ruas sem pressa e sem um destino específico, não para ir a algum lugar, mas para ver e ser visto, absorvendo a vida da cidade.

 

Um comentário:

Márcia Santos disse...

Adorei conhecer Porto
Cidade encantadora